Uma carta que costuma assustar o cliente, e às vezes o Tarólogo, é O Diabo. Isso porque na cultura judaico-cristã ele representa o Mal Absoluto, aquele que nos tenta, afastando-nos do caminho de Deus. Neste caminho, para atingirmos a redenção não podemos nos desviar nem um pouquinho e isso dá uma vantagem enorme ao diabo, bastante evidenciado no Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente: poucos são os que se salvam.
No Tarot de Marselha ele é representado por uma figura caricata, sexualmente ambígua, quase uma drag-queen, o que o torna ridículo aos nossos olhos, mas sem diminuir seu peso numa leitura.
Já Waite faz um contraponto com a carta VI, Os Enamorados. O casal apaixonado abençoado por uma anjo agora é o casal acorrentado aos pés do demônio, como se tivesse dado vazão à luxúria. É a negação da carta anterior (A Temperança).
O Diabo de Waite é Bafomé, e tem uma aparência horrível. Se o diabo fosse tão feio como Waite o desenha, seria impossível ele seduzir alguém.
Aliás, pesquisando os Tarots, custei a encontrar uma “boa” imagem do Diabo, pelo menos uma em que ele não fosse retratado nem como um transexual mal resolvido nem “feio como o capeta”. Encontrei no Tarot Erótico de Milos Manara, onde este arcano é representado por um casal composto por uma diaba bem sedutora e algo que eu suponho ser um vampiro. Manara, como sempre é bem generoso com a figura feminina e nem tanto com a masculina, mas pelo menos a diaba é capaz de seduzir alguém.
Mas como encarar O Diabo numa leitura?
Vamos ater primeiro ao sentido original: a tentação que desvia do caminho, algo que nos faz violar um código de conduta em favor de um prazer imediato. Se Freud fosse Tarólogo, diria que ele representa o princípio do prazer se superpondo ao princípio da realidade. E nem sempre é a tentação no sentido cristão. Pode ser algo que desvie do meu objetivo que eu mesmo escolhi. Por exemplo, desejo comprar uma casa e surge uma oportunidade de viajar que consumirá minhas economias adiando o meu sonho.
Num sentido mais profundo, podemos assemelhar o diabo ao Sombra junguiano, algo que esteve em moda em 2010 graças ao livro O Efeito Sombra. A Sombra é algo que não gostamos em nós mesmos e que negamos que existe e de vez em quando ele tenta aparecer, com mais o menos força. Por exemplo, o pai de família extramente responsável que num repente perde todo seu salário num jogo de cartas clandestino. A vontade de jogar sempre esteve lá, mas foi contida por um conjunto de regras morais que este pai de família aceitava como válidas.
Não se trata nem de um questionamento na tentativa de transcender valores arcaicos. É realmente um escorregão, do qual nos arrependeremos.
Como enfrentar o diabo? Um dos seus maiores poderes é fingir que não existe. O pai de família do exemplo só percebe a enrascada em que se meteu quando a carteira ficar vazia. Então o primeiro passo é reconhecer o diabo, não como uma existência externa a nós, mas como algo que faz parte de nossa personalidade. O segundo é enfrentá-lo, mas sem confrontá-lo.
Como isso? A Sombra só se manifesta quando ele foi negligenciado. Os tibetanos dizem que não podemos lutar contra nossos demônios, mas alimentá-los com aquilo que precisam, e não com o que querem. Talvez o homem que viajou em vez de comprar uma casa precisasse de descanso e isso pudesse ser resolvido por meio de uma viagem mais curta ou o pai de família talvez estivesse estressado com o dia a dia e uma quebra de rotina menos drástica pudesse ter sido feita.
Por fim, o Diabo pode estar certo. O valor contra o qual está indo contra pode ser algo que deve mesmo ser revisado. Isso pode ser percebido no Tarot de Waite: ele centra a figura do diabo na sexualidade, fazendo desta carta um contraponto a figura dos Enamorados. E a sexualidade era algo que a sociedade do início do século XX (o baralho Waite é desta época) varria pra debaixo do tapete.
O Louco ao percorrer seu caminho, fortalecido pela Temperança, encontra com o Diabo e o enfrenta.