Sinopse: Coletânea de contos celtas de várias épocas.
Diferentemente da mitologia grega, a mitologia celta, apesar de sua forte influência nas lendas arturianas e da recente expansão da Wicca, que se apropria dela, é pouco conhecida. Este livro busca resgatar alguns dos mitos celtas e trazê-los ao leitor de hoje.
Existem duas razões principais para este desconhecimento:
- Os celtas, apesar de terem uma escrita, faziam pouco uso dela, pois consideravam que a palavra tinha poderes mágicos e reservavam a escrita para casos especiais.
- Foram derrotados pelos romanos que destruíram monumentos, documentos e mataram detentores de conhecimentos, eliminando boa parte dos parcos registros da história do povo celta.
O livro é composto por 16 histórias, seguidas por um posfácio em que o autor explica suas escolhas e analisa um pouco do material disponibilizado ao leitor. É inteligente colocar este tipo de informação no final do livro, pois evita spoilers e uma leitura contaminada pela posição do ensaísta.
Os contos devem ser lidos pelo que são: uma narrativa construída para, principalmente, entreter.
Muito mais que os gregos, os celtas deixam os deuses próximos dos homens, a ponto de só os percebermos por seus feitos extraordinários. Deusas sofrem as dores do parto e deuses envelhecem ou são mortos por flechas, enquanto homens podem se transformar em animais.
A primeira história, “O Erro do Rei Nuada”, conta a saga das tribos de Dana e seu rei em confronto com os filborg, com a ajuda dos fomores. Os filborg e os fomores representam as forças primitivas e destrutivas, enquanto a tribo de Dana e seu rei são as forças da ordem.
Mas a ordem em si mesma não é um bem puro, pois pode se transformar em tirania, como ocorre quando Bres assume o trono.
O terceiro conto, “A Busca dos Filhos de Tuireann”, nos mostra um dos valores caros aos celtas: o heróismo, considerado desta forma como a capacidade de realizar feitos maravilhosos (vencer monstros invencíveis, subir a mais alta montanha, descer ao mais profundo dos mares, etc.).
O heroísmo pode mesmo trazer redenção ao mais cruel assassino, mesmo ante aos familiares das vítimas, e uma morte com honra seria um dos mais admiráveis feitos, como nos é mostrado nesta história.
A quarta e a quinta histórias (“O Príncipe do Abismo” e “A Cavaleira de Aberth”) são sobre Pwyll, conhecido por ser Príncipe do Abismo. O “abismo”, o que seria? Como em muitas culturas, é o reino subterrâneo dos mortos. Pwyll, após ter cometido uma descortesia com um estranho numa caçada, se oferece para reparar o erro. O estranho, porém, não é ninguém menos que Arawn, príncipe do abismo. Na nossa cultura seria o mesmo que encontrar-se com Satã, porém, para os Celtas não existe tanta polarização entre o senhor dos mortos e os homens ou deuses. Tanto que é possível um acordo entre eles, sem que haja um comprometimento maior a não ser cada um cumprir sua parte, e tanto um como outro honram o combinado.
O conto 6, “A Montanha Sobre o Mar”, conta a origem de Londres e por que ela venceu tantos ataques até os dias de hoje.
O sétimo, “A Mulher Mais Bonita do Mundo”, é sobre a relutância de Arianrod, uma poderosa maga, em aceitar seu filho e os estratagemas do pai adotivo da criança, Gwydion, para conseguir as bençãos da mãe para o menino. Nesta mesma história, há a criação de uma mulher artificial (feita por magia), por quem todos se apaixonam, até quem deve destruí-la.
O conto 8 fala de “A Fraqueza dos Ulates” (irlandeses). Uma deusa, Macha, vive oculta entre os homens, casada com um um deles, de quem fica grávida. Essa deusa, por falta da compaixão dos irlandeses em relação a seu estado, os amaldiçoa a sentir as dores do parto uma vez por ano, durante 15 dias.
O nono conto fala de um jovem Cuchulainn, que ousa reivindicar para si “O pedaço do herói”, a primeira porção do primeiro porco a ser servido num banquete. Aqui a questão da honra e da bravura ganham novamente relevância, mostrando quão caro eram esses valores para os celtas. No conto, os dois pretendentes ao pedaço do herói brigam o dia inteiro para provar quem é digno de tal iguaria, mesmo que ao cair da noite a carne esteja pra lá de fria.
O décimo conto, “O Touro Castanho de Culnge”, tem como tema a inutilidade da guerra movida por simples ambição, em que os dois lados saem perdedores. Apesar dos celtas serem um povo guerreiro e conquistador, tinham uma ética bem delineada em relação aos conflitos, como está retratado nesse conto.
O 11o conto, “Um Voo dos Cisnes”, é uma bela história de amor com um final surpreendente, cuja mensagem é o verdadeiro amor transcende a aparência física, um conceito que só volta a aparecer nos contos de fada após a Bela e a Fera e mais recentemente em Shrek.
Os contos 12, 13 e 14 (“O Rei sem Reino”, “O Casamento de Fionn” e “O Ciúme de Fionn”) são sobre o Fionn, rei dos fiana, com destaque para “O Ciúme de Fionn”. O amor proibído, mas realizado sob duras penas, de Diarmaid e Graine é o tema desta grande história, que pode ser considerada ancestral de “Tristão e Isolda” do ciclo arturiano e de todas as histórias de amor, de Romeu e Julieta à novela das sete.
O conto 15, “A ilha das mulheres”, conta uma história com contornos fantásticos, em que aparecem seres belíssimos e tentadores que afastam os homens de seus propósitos e distorções de tempo, que lembram histórias fantásticas e até de ficção científica mais contemporâneas.
O último conto, “O Príncipe dos Bardos”, conta a história de Tailesin, o maior de todos os bardos. A sua origem foi recontada inúmeras vezes em várias lendas orais e escritas. Tailesin faz parte do ciclo arturiano. Uma parte importantante é o duelo com Keridwen, em que Gwyon e a maga duelam entre si cada um assumindo a forma de um animal (como aparece no duelo entre o mago Merlin e a Madame Min no desenho A Espada era a Lei, dos estúdios Disney).
Este conto encerra muito bem o livro, pois os celtas colocavam o homem dentro de um universo em que conviviam com os deuses lado a lado e poderiam não só interagir diretamente como lutar e até vencê-los e, como acreditavam no poder da palavra, o simples fato de fabular e contar histórias dava um poder extraordinário a quem tinha capacidade de imaginação. Tal qual Tailesin, os criadores de fábulas atuais – escritores, poetas, roteiristas, diretores de cinema e teatro – tem um poder incomensurável, sendo capazes de criar mitos e lendas que ultrapassam a época em que foram escritos.
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- Contos e Lendas da Mitologia Celta, de Christian Leorier (Martins Fontes). Livraria Cultura